segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Primeiro Período


Doces Lembranças


E de repente o primeiro período penetrou na minha memória e por mais um ano que já se passou, me fez esquecer por instantes o agora.
Veio a mim o trote, as 1º aulas, a casa nova, o colchão novo, os amigos novos. Veio aos coincidentes encontros no calçadão, quando a gente mal se conhecia. Os encontros no cine Goita, quando fugíamos das aulas de histologia, do cine Dom Marcelo aos domingos, quando não voltávamos para casa. Veio a fossa do final de semana com saudades da família. Encontro na filosofia, só dava paquera. Veio o papo descontraído no Geraldão, o pilequinho no pagode, o churrasco da turma em alguma republica com quintal, que sempre terminava em carnaval. No Rio, nessa época, as bombas explodiam em todos os pontos da cidade, como atentados terroristas de direita.
Primeiro período foi só novidades e deixou saudades. Hoje da pra sentir o cheirinho que ficou da época. Era o medo da Anatomia, com razão. O terror da Bioquimica, a confusão na aula do João. Isso até me remete a uma aula do José Claudio de Bioquímica. Eu, já meio enturmado, não entendendo a solução de um problema, na pura inocência aventurei-me a perguntar — Oh Blau – Blau! Você poderia repetir novamente o problema? Ao que Jose Claudio, vermelho de raiva, não me respondeu até hoje.
Eram as festinhas nas republicas mais badaladas da época regadas a vinho tinto — cerveja naquela época já era cara —. Mas a turma entornava legal, pois tinha muitos que chegavam às festas no estado que deveria sair, ou sejam carregados.
Eram as brigas e as discussões do grupo de anatomia, que não se entendiam. Eram as reuniões noturnas no ônibus da 1001, e a saudade de casa contida nas algazarras no ônibus até o Rio. Eram as provinhas semanais de histologia. Era a cabeça raspada pelo trote e as drogarias vendendo produtos capilares milagrosos, e o boné que disfarçava a calvície forçada. Era a eterna esperança de transferência para a UERJ. Era a passagem da 1001 a CR$ 300,00. Era viajar de branco todo preto. Era o baile dos Calouros que eu não fui. Eram os bailes de calouro que eu ajudei a organizar. Era o Fofoc, o jornal da turma que ajudei a fundar. Era o Raul com suas excentricidades assustando as garotinhas. Era a bagunça na biblioteca. Era medir o fio de cabelo toda manhã esperando um milagre noturno.
E hoje? Onde está o riso descontraído? Hoje é um sorriso preocupado. Onde está o amigo que seguiu sua vida? Onde está o encontro no Goyta? No pagode, no Geraldão, no 1001. Onde está a fotografia da turma?
Primeiro período deixou saudades. Esse ano fazemos 25 anos que deixamos nossa FOC, 29 que nos separa dessa época. Como não pensarmos sobre isso? Um autor anônimo escreveu um dia: "Nossas loucuras são as mais sensatas emoções. Tudo o que fazemos deixamos de lembranças para os que sonham um dia ser como nós: loucos, mas felizes." Adaptação do conto de Arthur da Távola, do Livro Liberdade liberdade.


Ivany C Neto 21/09/2008

sábado, 20 de setembro de 2008

DIMENSÃO


Luiza estava agora sozinha no escritório, e poderia se entregar muito mais ao seu projeto predileto: estudar as estrelas.
— Muito estranho! — comentou para si mesma, mordendo a tampa de sua caneta esferográfica. — Gostaria de saber, por que não foi anunciada em nenhum boletim astronômico, a queda desse meteoro. Passarei uns e-mails para as principais agências para investigar o caso.
Nossa! Tenho ainda que preparar a aula de amanhã, pois é preciso inspirar algumas daquelas crianças, para o mundo da ciência.
Repentinamente, veio à sua mente, a imagem da cidade de sua infância, e Penhalonga apareceu em seus pensamentos. Já fazia muito tempo que não ia até lá.
A saudade que sentiu a fez achar que deveria ter aceitado o convite de seu pai, mas os compromissos novamente falaram mais alto. Vieram então as lembranças. Lembranças de que quando andar, para ela e sua irmã, representavam: correr e pular; sorrir e cantar; gritar e saltar de felicidade, correndo atrás dos cachorrinhos, e galopando no Trovão, o seu cavalo predileto; e simplesmente estar feliz, por ser uma pequena semente num mundo tão grande e sem paredes, que lhe trazia a liberdade que ainda não entendia, mas sabia sentir muito bem, algo que não mais encontrava na cidade grande.
Nessa época, comida para ela e sua irmã era algo simplesmente supérfluo, mas a magia do tempero encontrado nos pratos da roça lhes seduzia, e recebiam o mimo pelas mãos de seu pai que lhes davam na boca o alimento diário. Era como se estivessem retribuindo a passagem para o paraíso que seu pai lhes proporcionava, ao trazer-las durante as férias para aquele lugar tão encantador.
Certo dia, nas férias de Julho — lembrou ela —, depois de passar um dia inteiro de sol em cima do Trovão, encarou um prato enorme de feijoada, e um pernil assado de capivara que seu avô tinha preparado as véspera para o almoço. Estavam, com as bochechas rosadas do sol forte, e a pele toda picada de carrapatos trazidos pela seca do Inverno. Deviam ter seus quatro anos, e naquele dia comeram feito gente grande, repetindo, e ainda pedindo para fazer mais no dia seguinte. A digestão fora feita debaixo de um bambuzal, que ficava ao lado de uma mina, bem próxima à horta, onde se podia ver de perto o velho alambique da Fazenda do Sapê. Era um cantinho da parte externa da casa muito aconchegante. Diversos pedaços de tronco de árvores cerrados serviam de assentos, onde seu avô acomodava-se toda à tarde para descansar e contar seus casos.
Neste dia falávamos de épocas distantes – lembrou, ajeitando-se na poltrona —, precisamente da época de Getúlio Vargas — ex-presidente do Brasil —, que invadiu a fazenda com suas tropas, perseguindo quem não comungava com seus ideais. Luiza e Rachel atentas a tudo que se falava, comportavam-se como gente grande. A atenção à conversa, só era interrompida, pelas esporádicas corridas atrás dos cachorrinhos que tinham nascido naquela semana. E assim ficaram a tarde inteira, até o anoitecer, quando foram já cansadas, de carro até a cidade tomar guaraná e comer as rosquinhas favoritas da padaria do Geraldo.
Na noite daquele dia, os cachorros se agitaram no alto do pasto de cima. Latiram a noite toda, entrando pela madrugada adentro, só parando quando feriram de morte o animal encurralado, deixando marcas sangrentas no focinho da cachorrada. No dia seguinte seu avô acordou dizendo que os cachorros tinham cercado algum Tamanduá em cima de uma árvore.
Pela manhã, ao vê-los ainda sangrando, fomos tentar ajudá-los, sem sucesso, pois eles não entendiam que só queríamos ajudá-los. Marelo, o cão Americano que liderava o grupo, tinha espinho agarrado até na garganta.
Assustadas, se agitavam, andando de um lado para outro, quase chorando, com pena de seus bichinhos prediletos. Seu avô se aproximou com a calça suja de sangue e um cachorro agarrado em seus braços.
— O Tamanduá dessa noite, não estava sozinho! Um ouriço dos grandes o fez companhia — falou o pai de Ivan, agarrando o focinho de Branquinha, e com um alicate na mão esquerda, tentava retirar seus espinhos.
— Papai! Esse Matão-do-ar é muito grande?— perguntou Luiza.
— Esse o que minha filha? — perguntou Ivan sem entender o que a menina falava.
— O Matão-do-ar! Ele bateu nos cachorrinhos essa noite.
— Quem que bateu nos cachorrinhos minha filha?
— O Matão-do-ar, papai!
— O que minha filha?
— É Tamanduá que ela quer dizer. — traduziu o avô com um sorriso no rosto.
— Ah! Tamanduá... rs, rs, rs. Quero dizer Matão-do-ar! Isso mesmo Luiza, foi o Matão-do-ar!

E foi assim que o bicho — o Tamanduá — ficou com um nome novo.


Trecho extraido do 2º capítulo do livro: DIMENSÃO de Ivany C Neto

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Outros sentidos

A PIMENTA DO CHEF

Outro dia fui almoçar num restaurante novo aqui no meu bairro. Como costumo almoçar fora de casa escolho sempre durante a semana o que mais se assemelha com uma casa — de família —, mas nem sempre é possível. Às vezes a pressa me leva a escolher o que está mais ao alcance em alguns passos. Por que então não sair um pouco da rotina? Era só atravessar a rua e pronto, não iria doer nada comer num desses lugares que sofisticam a comida do dia a dia, como se não houvesse as cinco feiras da semana, servindo só comida de domingo. Imaginei-me então de sandálias, bermuda e óculos escuro, e rumei para o bufê. Tinha de tudo: Camarão a Milanesa, Lulas à Pomedor, Peixe à Escabeche, Bacalhau à Gomes de Sá, Picanha Maturada, Fraudinha Desnaturada e Sardinha Desenlatada. Tinha mesmo de tudo, mas aos meus olhos faltava o que aos mais nobres nem sempre arregala os olhos. O simples, o trivial, o Alho e Óleo – esse sim —, para mim Nobre. Tão nobre e tão simples que não tem quem não o tenha experimentando, e não conheça o sabor desta mistura. Poucos, contudo, se atrevem no isolamento da cozinha obter mais do que o simples prazer de apenas apreciá-lo em seu palato. Por alguns instantes perdi os sentidos, ou ganhei-os, no meio de mil recordações. Veio-me o cheiro do almoço de família aos domingos. Num estado alterado de consciência, o que falar dos outros sentidos?
Falar sobre o sublime sentido do olfato ao encontro do aroma desprendido destes dois ingredientes quando se misturam, é um banquete. Senti-lo num frevo deleite, subindo numa cortina de fumaça transparente, é de leveza insustentável. Logo se espalha pela casa, pela gente, atinge qualquer ambiente.
Volto novamente à realidade e noto que estava em transe. Por alguns instantes o encontro dos temperos misturou os sentidos. Numa dança envolvente, numa viagem mágica de sabores que exalta e recorda, enfim acordo e peço ao enorme chef que passa ligeiro por mim com um caldeirão de frutos do mar nas mãos, para me trazer a pimenta. Rapidamente ele se retira, voltando animado com um frasquinho que mais lembrava um perfume e tenta colocar a ardida no meu prato. Pego de sua mão a pimenta e coloco com cuidado quatro gotas apenas. Uma no norte, outra no sul, outra no leste e outra no oeste de meu prato. Muito pouco pra não queimar muito. Arrependi-me logo nas primeiras garfadas, pois o sabor era indecifrável e merecia no mínimo mais quatro gotinhas. O sudeste, o noroeste, o nordeste e o sudoeste mereciam participar desse evento.
Levantei-me logo que terminei a refeição e fui ao seu encontro para agradecê-lo, não antes de informá-lo de que ela era da boa e que merecia mais um pouquinho. Ele com um sorriso enorme e amigável, alegremente me informa que, a da casa é boa, mas a que ele tem na cozinha ele trouxe de sua casa — de família.

Ivany C Neto 19/09/2008