sábado, 20 de setembro de 2008

DIMENSÃO


Luiza estava agora sozinha no escritório, e poderia se entregar muito mais ao seu projeto predileto: estudar as estrelas.
— Muito estranho! — comentou para si mesma, mordendo a tampa de sua caneta esferográfica. — Gostaria de saber, por que não foi anunciada em nenhum boletim astronômico, a queda desse meteoro. Passarei uns e-mails para as principais agências para investigar o caso.
Nossa! Tenho ainda que preparar a aula de amanhã, pois é preciso inspirar algumas daquelas crianças, para o mundo da ciência.
Repentinamente, veio à sua mente, a imagem da cidade de sua infância, e Penhalonga apareceu em seus pensamentos. Já fazia muito tempo que não ia até lá.
A saudade que sentiu a fez achar que deveria ter aceitado o convite de seu pai, mas os compromissos novamente falaram mais alto. Vieram então as lembranças. Lembranças de que quando andar, para ela e sua irmã, representavam: correr e pular; sorrir e cantar; gritar e saltar de felicidade, correndo atrás dos cachorrinhos, e galopando no Trovão, o seu cavalo predileto; e simplesmente estar feliz, por ser uma pequena semente num mundo tão grande e sem paredes, que lhe trazia a liberdade que ainda não entendia, mas sabia sentir muito bem, algo que não mais encontrava na cidade grande.
Nessa época, comida para ela e sua irmã era algo simplesmente supérfluo, mas a magia do tempero encontrado nos pratos da roça lhes seduzia, e recebiam o mimo pelas mãos de seu pai que lhes davam na boca o alimento diário. Era como se estivessem retribuindo a passagem para o paraíso que seu pai lhes proporcionava, ao trazer-las durante as férias para aquele lugar tão encantador.
Certo dia, nas férias de Julho — lembrou ela —, depois de passar um dia inteiro de sol em cima do Trovão, encarou um prato enorme de feijoada, e um pernil assado de capivara que seu avô tinha preparado as véspera para o almoço. Estavam, com as bochechas rosadas do sol forte, e a pele toda picada de carrapatos trazidos pela seca do Inverno. Deviam ter seus quatro anos, e naquele dia comeram feito gente grande, repetindo, e ainda pedindo para fazer mais no dia seguinte. A digestão fora feita debaixo de um bambuzal, que ficava ao lado de uma mina, bem próxima à horta, onde se podia ver de perto o velho alambique da Fazenda do Sapê. Era um cantinho da parte externa da casa muito aconchegante. Diversos pedaços de tronco de árvores cerrados serviam de assentos, onde seu avô acomodava-se toda à tarde para descansar e contar seus casos.
Neste dia falávamos de épocas distantes – lembrou, ajeitando-se na poltrona —, precisamente da época de Getúlio Vargas — ex-presidente do Brasil —, que invadiu a fazenda com suas tropas, perseguindo quem não comungava com seus ideais. Luiza e Rachel atentas a tudo que se falava, comportavam-se como gente grande. A atenção à conversa, só era interrompida, pelas esporádicas corridas atrás dos cachorrinhos que tinham nascido naquela semana. E assim ficaram a tarde inteira, até o anoitecer, quando foram já cansadas, de carro até a cidade tomar guaraná e comer as rosquinhas favoritas da padaria do Geraldo.
Na noite daquele dia, os cachorros se agitaram no alto do pasto de cima. Latiram a noite toda, entrando pela madrugada adentro, só parando quando feriram de morte o animal encurralado, deixando marcas sangrentas no focinho da cachorrada. No dia seguinte seu avô acordou dizendo que os cachorros tinham cercado algum Tamanduá em cima de uma árvore.
Pela manhã, ao vê-los ainda sangrando, fomos tentar ajudá-los, sem sucesso, pois eles não entendiam que só queríamos ajudá-los. Marelo, o cão Americano que liderava o grupo, tinha espinho agarrado até na garganta.
Assustadas, se agitavam, andando de um lado para outro, quase chorando, com pena de seus bichinhos prediletos. Seu avô se aproximou com a calça suja de sangue e um cachorro agarrado em seus braços.
— O Tamanduá dessa noite, não estava sozinho! Um ouriço dos grandes o fez companhia — falou o pai de Ivan, agarrando o focinho de Branquinha, e com um alicate na mão esquerda, tentava retirar seus espinhos.
— Papai! Esse Matão-do-ar é muito grande?— perguntou Luiza.
— Esse o que minha filha? — perguntou Ivan sem entender o que a menina falava.
— O Matão-do-ar! Ele bateu nos cachorrinhos essa noite.
— Quem que bateu nos cachorrinhos minha filha?
— O Matão-do-ar, papai!
— O que minha filha?
— É Tamanduá que ela quer dizer. — traduziu o avô com um sorriso no rosto.
— Ah! Tamanduá... rs, rs, rs. Quero dizer Matão-do-ar! Isso mesmo Luiza, foi o Matão-do-ar!

E foi assim que o bicho — o Tamanduá — ficou com um nome novo.


Trecho extraido do 2º capítulo do livro: DIMENSÃO de Ivany C Neto

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